Morro da Conceição
O Morro da Conceição é um recanto escondido no bairro da Saúde, na zona portuária do Rio de Janeiro. Marco inicial da colonização portuguesa na cidade, a origem do nome vem de uma capelinha construída no topo do morro em homenagem à Nossa Senhora da Conceição, no ano de 1590. Hoje é um importante símbolo histórico-cultural da história carioca, composto por habitações cheias de cores e estilos arquitetônicos dos últimos três séculos. Junto às heranças da tradição lusitana, da memória negra, da cultura operária e das construções militares, mora uma comunidade dotada de uma configuração social peculiar frente à cidade grande. Este cantinho pitoresco da cidade tem despertado cada vez o interesse do capital privado em meio ao processo de revitalização da zona portuária e às especulações turísticas em seu entorno. Este projeto foi desenvolvido com o objetivo de criar uma cultura de proximidade com o morro por meio de uma intervenção urbana.
Durante o processo investigativo, foi observado uma série de conflitos existentes ocasionados pelos discursos e projetos de preservação e revitalização da zona portuária. O morro está sob a proteção do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da legislação municipal para preservação de bens de valor histórico devido à importância do seu conjunto arquitetônico habitacional do século XVIII e XIX. Na última década, os bens tombados de propriedade do Estado vêm recebendo investimentos públicos e privados através de convênios para restauração e reabilitação, ao passo que os conjuntos habitacionais que deveriam estar incluídos neste processo (independentemente de ser propriedade do Estado ou não) não são considerados. Fora alguns benefícios fiscais do governo, as propriedades particulares tombadas dependem exclusivamente do interesse e do investimento de seus proprietários. Para tanto, a legislação elaborou uma série de regulamentações limitando gabaritos, pavimentos e intervenções na tipologia dos imóveis, assim como o tipo de utilização, sem, no entanto, atentar às condições da comunidade local – tão histórica quanto os seus conjuntos habitacionais.
Em razão da proximidade com a antiga porta de entrada da cidade, o cais do porto, a área se tornou uma residência estratégica segundo o conceito básico de distribuição do espaço urbano para o homem: moradia, trabalho e lazer próximos. Apesar dos processos históricos de intervenção urbana no centro do Rio de Janeiro terem reduzido drasticamente as condições ideais e a qualidade de vida dos moradores durante as últimas décadas, grande parte da população do morro permaneceu, remanescente daqueles que, em outras épocas, instalaram-se ali quando o cais estava em plena atividade, devido às facilidades que a lógica desta proximidade trazia. Hoje, a singularidade resultante deste fundamento se encontra nas relações de vizinhança, de parentesco, de solidariedade e de território cultivadas e perpetuadas entre os moradores através do tempo, por meio de sentimentos coletivos de pertencimento, permanência e familiaridade com o Morro da Conceição. As sociabilidades e lógicas locais – próprias e diversificadas entre os descendentes de portugueses e espanhóis, artistas plásticos, nordestinos e quilombolas – incluem particularidades como conversas de “janela”, cadeiras nas calçadas e frequentes trocas de favores. Sem ter meios para arcar com os altos custos das intervenções regulamentadas, considerando a realidade socioeconômica de baixa e média renda de grande parte da população, os proprietários são deixados para “optar” pelo abandono, pela locação ou pelas reformas irregulares geradas pela necessidade de melhorar as condições de habitabilidade ou de adaptar o uso. Em todos os cenários, as consequências envolvem tanto a deterioração das edificações, nas quais já foram diagnosticadas graves patologias, quanto o comprometimento dos costumes, das tradições e das práticas cotidianas locais.
Visto a insuficiência da legislação vigente, existe hoje uma “preocupação” das autoridades em revitalizar a zona portuária e patrimoniar o Morro da Conceição. A degradação e a descaracterização do patrimônio histórico e arquitetônico encontradas atualmente é resultado da ineficácia dos projetos governamentais em manter a morfologia urbana e a tipologia das edificações, frente ao processo de crescimento desordenado da cidade no último século, gerado pelos interesses econômicos e políticos das classes dominantes. Apesar das intervenções terem gradualmente esvaziado o centro de serviços básicos – tais como farmácias, supermercados, pequenos comércios e até de atendimento médico e escolas, o que levou os moradores alijados pelo processo a abandonar aos poucos suas residências e se transferir para outros bairros, o Morro da Conceição se manteve relativamente protegido devido ao isolamento gerado pelas suas condições geográficas, à existência das edificações tombadas pelo IPHAN ao seu redor e aos esforços da população que resistiu e permaneceu no local. No entanto, os discursos de preservação e revitalização não condizem com o que aparentam preconizar em momento algum. Assim como a zona portuária não é algo morto para se “revitalizar”, a “conservação histórica” do Morro da Conceição, neste contexto, não passa de uma pretensão – transformada em argumento cultural para o exercício do poder – em nome de um plano de desenvolvimento econômico baseado no comércio turístico. Junto às propostas políticas de incentivo às atividades turísticas, escondem-se projetos de patrimonialização e de gentrificação, fomentados pela lógica do lucro sob a perspectiva da “folclorização” do morro e da exploração predatória (relacionada aos excessos do turismo) como atrativos rentáveis.
O valor inestimável do Morro da Conceição enquanto patrimônio está no seu conjunto arquitetônico habitacional que ainda hoje cumpre, extraordinariamente, a mesma função pela qual foi concebido outrora. Isto é, “patrimônio” não é algo que pertence somente ao passado, mas sim o que se cria e se constrói diariamente através de ações e memórias individuais e coletivas. Se preservar é a ação de proteger e manter o que já existe, torna-se vital considerar tudo o que faz do Morro da Conceição ser o patrimônio histórico material e imaterial vivo que ele é. Portanto, a solução mais eficaz seria criar condições para a comunidade local permanecer e manter o seu modo de vida, respeitando e integrando os atores sociais ao contexto em que vivem, enquanto parte do processo de preservação e revitalização – pois como muito bem observado por Aloísio Magalhães, o uso é a melhor maneira de preservar o antigo e a comunidade é a melhor guardiã do seu patrimônio.
Na busca por recursos simbólicos que refletissem a existência da problemática naquele contexto de reformas, a herança da tradição lusitana em fixar azulejos com figuras santas nas fachadas dos sobrados coloniais e das vilas operárias centenárias era notória. Adaptada às devoções locais, essa liturgia arquitetônica era vista como um sinal de fé e tinha como função agradecer, pagar promessas ou pedir proteções e bênçãos aos representantes do organograma celestial. Mesmo que não fossem portugueses ou descendentes de quem construiu os imóveis, os moradores mantiveram os adornos, fosse para preservar a arquitetura original, fosse para continuar protegendo a casa e seus residentes. Em virtude de ser a padroeira do morro, Nossa Senhora da Conceição é a imagem sacra mais popular nos lares, acompanhada por outras presenças como Nossa Senhora de Fátima, Santa Teresinha, Santo Antônio, Santa Bárbara, Nossa Senhora da Aparecida, Santo Jesus, São João Batista e São Judas Tadeu. Assim sendo, a iconografia cristã e a analogia à figura santa – como tudo aquilo que é sagrado e deve ser tratado com respeito – foram apropriadas na qualidade de crítica e transpostas sob a forma de relicários destinados a guardar e proteger os processos que ameaçam o Morro da Conceição.